Rubens Amador

"León Broqua a Pelotas"

Por Rubens Amador
Jornalista

São muitas as pessoas que, em nossa cidade, possuem relógios com a inscrição que serve de título a este trabalho, no seu mostrador esmaltado.

Lá pelos anos 1930, dois cidadãos, aqui do Estado, um de Pelotas e outro do Rio Grande, passaram a importar da França, relógios, sempre de coluna, acionados por pesos (cada um pesando 3,750 quilos) presos por uma corda feita de tripa de carneiro (hoje utiliza-se nylon nas reposições) e que movimenta os mecanismos com muito boa precisão. Em verdade, apesar da qualidade dos relógios, eles não primavam pelas caixas que os traziam da Europa. Não eram considerados relógios de classe, como os da Prefeitura, o da Beneficência Portuguesa, e o do Cury Palace Hotel, por exemplo.

No Rio Grande, era um senhor árabe que os importava, um tal de Ibrahim. Lá na Noiva do Mar são comuns os "Ibrahim Broqua a Rio Grande". Já em nossa cidade eles traziam impresso no mostrador esmaltado, como os do Rio Grande, a expressão "León Broqua a Pelotas" . "Broqua" era o nome do fabricante.

Estas informações me foram passadas pelo antigo técnico em relojoaria, ali no Zabaleta, o Sr. José dos Santos, que completou dizendo-me quem era o Sr. León. Foi aí que fiquei sabendo que, por feliz coincidência eu o conhecera por cerca de 30 minutos, o tempo de comprar em sua relojoaria um relógio. Essa pessoa ficou muito marcada por mim por uma particularidade: tinha sido o primeiro relojoeiro que conheci, judeu e cego, ainda em atividade. Já explico.

Sua relojoaria ficava ali na rua Sete de setembro, quase esquina Osório. Era uma loja simples. Havia o célebre balcão envidraçado e, no fundo, uma alta prateleira também com vidros, onde o Léon Kliemann, este seu nome, guardava os relógios dos fregueses, consertados, e alguns que estavam à venda, bem como as peças que eram empregadas nas máquinas dos clientes. Tudo isto pude perceber naqueles não mais que trinta minutos que permaneci em sua loja a procura de um despertador original que combinasse com o estilo de nosso quarto. Corria o ano de 1960, o ano em que me casei. Logo percebi que o Sr. Kliemann, que sentava-se, bem vestido, numa cadeira solitária próxima a do seu empregado, que era quem realmente consertava os relógios. O seu funcionário perguntava-lhe sobre determinada peça, e ele respondia prontamente: "trata-se do calibre tal, é um eixo, tem tantas unidades na caixa verde na parte de cima da estante, no canto".

Disseram-me, posteriormente, que ele sabia as marcas dos relógios de cada freguês, o tipo dos mesmos, seus nomes e o preço de cada serviço.

Muito atencioso, ele me recomendou um despertador italiano, marca Veglia, de dimensões reduzidas, que desperta de forma permanente, ou intermitente, por cerca de 15 longos minutos, para o caso de um dorminhoco contumaz. O preço? Dois mil cruzeiros.

Já perceberam que ainda tenho o tal despertador, e a cada noite que aciono sua corda, lembro-me daquele velho senhor judeu cego que consertava relógios sim, pois ele dizia como fazer para resolver qualquer problema técnico, orientando seu empregado - que era seus olhos - naquele tempo em que os relógios eram só à corda.

Mas o que me deixa pensando é que em Pelotas, ele era o León, do "León Broqua a Pelotas", um semita, que quantas vezes não contatou com seu colega de Rio Grande, o Ibrahim, do "Ibrahim Broqua a Rio Grande", um árabe, sobre o objeto de que eram os únicos importadores no Estado?

Por que ainda hoje não é possível também essa camaradagem a nível mundial entre esses primos étnicos, quando o mundo continua dando para todos: para os que enxergam e os que são privados da visão! Quando o que interessa é viver feliz!

Não estará faltando apenas um acerto nos ponteiros desses outros vizinhos, parentes, e cabeçudos brigões?

(texto publicado em 2002)​

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